Entre Sá Carneiro, o Tollan e as Doce: assim começaram os anos 80 em Portugal, a "década prodigiosa" (2025)

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O cheiro, a cor e o formato que as coisas dos Estados Unidos da América deram aos nossos oitenta estão ainda por toda a parte. Um miúdo português cresceu a habituar-se aos anglicismos e à língua inglesa com sotaque americano, bem como referências explícitas, como os filmes de cowboys (os westerns) e de gangsters e passados na Segunda Guerra Mundial, que a RTP emitia a eito, onde os Americanos eram os bons e os vencedores. Em vez de tramas decorridas em Angola ou Moçambique, ou séries acerca do 25 de Abril, fomos sendo servidos de persistentes teorias sobre a morte de Kennedy, versões da guerra do Vietname e dramas urbanos de polícias e gangues (como em A Balada de Hill Street, de 1981). À medida que os fomos vendo em videocassete, devorámos os filmes Rambo e Rocky, ou ainda aqueles com Chuck Norris e Schwarzenegger. Que pudesse haver uma ideologia, propósitos políticos, mensagens, enfim, uma retórica neste cinema de ação assente na ideia do herói individual autossuficiente, marcado pela atmosfera carregada que a guerra do Vietname provocava, ultrapassava-nos. Rambo era Rambo e na Guerra do Vietname, como nas outras guerras dos outros filmes havia maus (os locais) e bons (os americanos). Porquê? Porque era assim que achávamos que era.

Depois da morte de Sá Carneiro, Portugal tinha um novo primeiro-ministro, Francisco Pinto Balsemão. A situação económica era péssima, como vinha sendo desde a Revolução, mas nem por isso a música portuguesa estava menos vibrante. Uma das mais enigmáticas e inebriantes canções foi um lado B de um maxi-single cantado por uma locutora e depois jornalista da RTP, Manuela Moura Guedes. Longe do estilo rock roufenho vestido de ganga, o suave «Foram Cardos Foram Prosas» é uma das músicas mais conseguidas daquela fase, distinguindo-se bem da misturada. O autor da letra era Miguel Esteves Cardoso, um intelectual brilhante que agitava a elite lisboeta. Filho de um português e de uma inglesa, nascido em Lisboa em julho de 1955, o mais velho de três irmãos estudava em Évora quando se deu o 25 de Abril. No reviralho, iria para Manchester estudar filosofia política e por lá ficou durante oito anos, formando-se com uma classificação brilhante, até regressar a Portugal. À medida que entramos nos oitenta, Esteves Cardoso, depressa sintetizado como «o MEC», começa a aparecer na televisão e a ser mais frequente nos jornais e revistas, em textos de opinião, tomadas de posição, crónicas, entrevistas ou artigos. Se Herman José usou na lapela o colégio alemão, Esteves Cardoso, apenas um ano mais novo e também estrangeirado, exibia o seu doutoramento numa universidade inglesa como credencial. A sua tese chama-se Ideology of Lusitanian integration – Saudade, Sebastianism and ideology in Portuguese politics 1914-1933 e foi escrita nos anos em que enviava textos que publicava em O Jornal e no Se7e, em revistas e se diziam no programa de rádio Café Concerto, da Comercial. Eram textos quase sempre acerca de música. Muitos estão reunidos em Escrítica Pop, Um Quarto da Década do Rock, 1980-1982, o primeiro livro publicado de MEC. No texto de apresentação, publicado na contracapa da esgotadíssima primeira edição pela Editora Querco, o escritor e jornalista veterano Fernando Assis Pacheco, amigo e admirador de MEC, escreve:

«Há em Miguel Esteves Cardoso dois Miguéis Esteves Cardoso, o paciente recenseador de músicas que aqui se lê e o outro, o ficcionista, ainda sem estórias publicadas e não sei sequer se escritas. Mas que essoutro existe, aposto dobrado contra singelo: muitas das prosas críticas deste livro são já plots, fábulas, ficções, tudo servido por um uso pessoalíssimo da língua, não transmissível a epígonos. (…). Do talento não falo: parece-me evidente, com o único senão de fazer uma legião de invejosos.»

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MEC não era segredo para a classe jornalística, faltava pouco para o país vir a conhecê-lo melhor. Foi um «menino marrão», disse-o numa entrevista a Carlos Cruz, em 1991, já muito popular, afirmando que escrevia por dinheiro. «E para ganhar dinheiro, era esperado que tivesse piada».

Terei sido apresentado à escrita de Esteves Cardoso a meio da década, já ele publicava no Expresso. O meu pai era um comprador e leitor de jornais e eu pegava-lhes, também porque havia largas porções do tempo em que estava aborrecido de morte. Gostava de desenhar umas bigodaças e uns dentes de vampiros nas fotografias. Os meus bichos carpinteiros, como dizia a família, não tinham descanso nem têm relação com os anos oitenta, mas é uma lembrança que lhes associo em permanência. Nas publicações, acompanhava o Sporting, lia as tiras de banda desenhada, fazia os passatempos e não falhava as últimas da competição anual de construções na areia, promovida pelo Diário de Notícias nas praias portuguesas, começando sempre a leitura pelo fim, um hábito que mantenho, pelas páginas de cultura popular e do desporto. Seis anos depois do 25 de Abril e com milhares de Portugueses repatriados, eram precisas casas, escolas, estradas, saneamento, iluminação nas ruas. Portugal era um estaleiro. Em fevereiro de 1982, no jornal A Capital referia-se um plano de emergência na Educação de adjudicação de mais vinte e oito escolas de preparatório e secundário. A chegada de muitas crianças do antigo Ultramar justificava essa carência, bem como uma progressiva consciência nas famílias de que era importante assegurar uma educação aos filhos, e a circunstância de um número substancial de mulheres portuguesas estar no mercado de trabalho e precisar de um sítio onde deixar os filhos. O ministro da Educação de então revelava que, em 1982, quarenta e cinco novas escolas começariam a funcionar e em 1983 seriam setenta e três.

No meu cosmos, posso assegurar que havia sempre obras na minha linha de vista. A minha infância e adolescência decorreu a atravessar obras, construções e consequentes lamas, madeiras, montes de brita, areia, tijolos, telhas e ferros. Era raro o dia de inverno que não chegava a casa com os sapatos enlameados.

A zona onde vivia ficou irreconhecível em meia dúzia de anos, com vastas urbanizações, de todas as cores e feitios, a ocuparem os terrenos de flores silvestres, silvados e ervas onde antes brincava, colhia amoras e chupava azedas, numa voragem que se estendeu pelos noventa. Os percursos que fazia em criança para a escola tornaram-se extensas fileiras de prédios, pontuando o chamado desenvolvimento que alarga as cidades para as periferias.

Entre o princípio e o final da década foram construídas dezenas de milhar de casas, sobretudo apartamentos, que a pouco e pouco deixavam de se chamar «andares». Lisboa tornava-se numa Grande Lisboa, engolindo a zona da Amadora, que subiu a cidade em 1979, a margem sul do Tejo, a Linha de Sintra e a de Cascais, esticando-se na cidade para as zonas do Alto do Lumiar ou de Telheiras, por exemplo. Obviamente, esta construção estendeu-se a outras zonas do território, numa oferta ligada às políticas públicas como o Fundo de Fomento à Habitação e cooperativas de habitação, programas de realojamento, ajudada numa fase posterior pelo preço cada vez mais baixo do dinheiro, por conta da descida dos juros, aspetos da vida adulta que desconhecia, embora soubesse que os meus pais pagavam ao banco um empréstimo todos os meses. O que sabia também é que o Algarve estava todo «estragado pela construção», como tantas vezes se ouvia. A necessidade, a falta de políticas de território e legislação apropriada permitiram inúmeras construções clandestinas, um caos de gostos, opções e soluções de ocupação de espaço, com quintais, placas de lusalite, zincos, cimentos e grades usados como o construtor-proprietário bem entendesse.

A construção civil não começou nos anos oitenta, como é evidente, mas se devemos a esta década o gelado Calippo, também devemos vários bairros e conjuntos de prédios de arquitetura discutível, colmeias de organização e cores muito diversas, com varandas que os moradores se apressavam a fechar com alumínios, formando núcleos de edifícios amontoados em vales e colinas que tornam ainda hoje bastante peculiar, para não dizer outra coisa, a paisagem urbana portuguesa nos arredores das cidades. É de registar que a nostalgia recorrente de quem cresceu perto destas façanhas de cimento e betão não inclua marquises, mas estas existiram no país muito pouco desenvolvido saído da ditadura, em que o gosto e o critério foram vítimas da urgência. Era um tempo em que a sigla mais ouvida deixou de ser MFA (Movimento das Forças Armadas) e passou a ser CEE (Comunidade Económica Europeia) – ajudou que em março de 1981, vindos do Porto e ainda sem Rui Reininho, o Grupo Novo Rock, GNR, lançasse o single «Portugal na CEE», uma sátira cantada a essa obsessão dos políticos que era a adesão ao mercado único. Década depois, é inquestionável a importância de Portugal fazer parte da União Europeia, mas na altura parecia que só alguns políticos se preocupavam com o imperativo que era integrar o mercado comum. É duvidoso que o povo de um modo geral, ou até os artistas, tivesse noção da fortuna que o país viria a ter a partir de 1986. Certamente as crianças não tinham a menor ideia.

Cantavam os GNR:

«Na rádio, na TV
Nos jornais, quem não lê? Portugal e a CEE
Quanto mais se fala menos se vê
Já estou farto e quero ver

Quero ver Portugal na CEE Quero ver Portugal… na CEE»

Como uma língua partilhada, aprendemos logo como funcionava o nosso planeta. Telefonava-se de cafés e pagava-se ao período, como se telefonava de cabines com moedas. Ia-se ao pão, com um saco de pano, o comerciante agarrava as carcaças com a mão depois de manusear as notas e moedas do cliente anterior. Ninguém queria saber. Havia outros problemas na nação que podiam ser pitorescos, como quando os stocks de cigarros em Portugal estavam quase no ponto zero e houve uma invasão espanhola de tabaco.

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